segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Rafael Marcurio da Cól

Dialogo entre The Beatles e Os Mutantes: o psicodelismo constrói o estilo antropofágico de ser Mutante
Rafael Marcurio da Cól[1]

Nos anos 70, no Brasil, desenvolveu-se o movimento de contracultura que revolucionou o modo de se fazer arte no país, no caso observado, especificamente, canções. Parte-se dos padrões estéticos perfeitos (como o de voz, canção e arranjo, pregados pela MPB da época e pela Bossa Nova, simbolizados pelo repertório e pelas vozes de Elis Regina e João Gilberto) para algo que represente melhor a realidade social e que choque mais os contempladores passivos, mesmo que seja pelo grotesco ou pelo humor ácido. Pode-se dizer que, essa mudança aconteceu no Brasil como uma resposta tanto à linha evolutiva da MPB quanto ao rock cantado pela banda The Beatles, a partir do seu álbum Revolver (1966), na Inglaterra, que introduz nas canções um aspecto experimental, com a utilização de objetos do cotidiano como instrumentos musicais; e o psicodelismo, que trará um efeito alucinógeno às canções.
O movimento de contracultura começa a se intensificar no Brasil quando Gilberto Gil e Os Mutantes participam do 3º Festival Popular de Música Brasileira (1968). Com a canção “Domingo no Parque”, Os Mutantes têm a sua primeira participação no disco Gilberto Gil (1968) e são convidados para participar do LP Tropicália ou Panis et Circensis (1968), dos Tropicalistas, na canção “Panis et Cincensis” – a primeira canção gravada pela banda, de acordo com Calado (1995, p. 96 – 97).
A banda Os Mutantes nasce no contexto introduzido acima e é a propulsora do rock nacional. Com a premissa de seu estilo ser antropofágico (uma espécie de canibalismo cultural),“mastiga” e nem sempre “engole” a cultura do outro (tanto de dentro – a Tropicália – quanto de fora – The Beatles – do país) e, assim, constrói o seu estilo de compor, tocar e cantar. Os Mutantes são originais tanto em suas composições quanto nas canções de outros compositores gravadas por eles, pois, por meio da bricolagem, adaptam as canções ao estilo exótico e exuberante de suas performances. Essas adaptações são o foco desse trabalho, pois nelas será possível ver três espécies diferentes de respostas estéticas à sociedade, contempladas e vividas de maneira ativa.
De um lado, tem-se a obra prima, criada e interpretada por seu criador, que nasce com as suas próprias influências. A partir de uma segunda versão, a canção passa a ter outro sentido, pois tem um outro olhar por meio de outros diálogos. E pelo signo ser ideológico, de acordo com Bakhtin (1997), torna-se possível essa afirmação, visto que o mesmo texto pode ser lido de maneiras diferentes e, dependendo do contexto onde ele está inserido, ele terá valor e sentido diferenciados.
No primeiro LP, Mutantes (1968), já aparece a presença de The Beatles de maneira enfatizada nas canções da banda brasileira, uma vez que os jovens, recém-saídos das garagens, passam por uma transformação rápida: de cover’s para compositores e intérpretes. A princípio, seu repertório era basicamente composto por canções de The Beatles, depois de lançados, do Festival diretamente para a gravadora, vêem-se impelidos a interpretar e a compor. O psicodelismo e o experimentalismo são os caminhos mais seguidos pelos jovens, via diálogo fecundo tanto com a banda inglesa quanto com os tropicalistas, o que irá influenciar a fundo o estilo Mutante.
O disco de 1968[2] é cheio de inovações e regravações que vão de uma canção de Gil e Caetano trazida dos terreiros de Candomblé, denominada “Bat Macumba” (1968) a uma canção francesa interpretada por Françoise Hardy, “Le premier Bonheur du Jour” (1968), composta por Jean Renard e Frank Gerald. O disco apresenta poucas composições da banda, mas já demonstra muita personalidade nas execuções realizadas, o que se intensifica ao decorrer de sua trajetória até a saída de Rita Lee, em 1971.
As duas canções citadas, apesar de serem de compositores e de países diferentes, nas versões gravadas pela banda Os Mutantes  possuem elementos trazidos do hábito de ouvir e tocar o repertório da banda de Liverpool. O dialogismo, na perspectiva bakhitiniana, deve ser observado nas canções, no caso, desde o arranjo (que contém elementos típicos de Thes Beatles, como a distorção da guitarra e as onomatopéias utilizadas entre uma estrofe e outra) até a maneira de cantar/entoar (as várias vocalizações no decorrer das canções).
Com base na filosofia dialógica do Círculo de Bakhtin, pode-se dizer que o discurso nunca é constituído de um única voz, pois ele dialoga com outras várias e, em embate (de conformidade ou distanciamento), respondem umas às outras. Nesse sentido, pode-se pensar que a canção “Bat Macumba” (1968) dialoga com The Beatles tanto quanto com os terreiros de Candomblé ao trazer as vozes dessa cultura ritual à tona, com uma cara mais jovial, uma vez que, no decorrer da mesma, pode-se ouvir, além dos instrumentos de percussão, a guitarra com distorção forte durante toda a canção e um riff com o contrabaixo, que contrasta os tons agudos da guitarra e dá o tom ao marcar o andamento ritmico da canção. Isso, sem contar a voz d’Os Mutantes como locutores. Em outras palavras, pode-se dizer que, por meio da voz dos cantores, aparece a voz dos terreiros de Candomblé (pelo andamento linguístico que imita determinado sotaque e pelos vocábulos presentes na letra e pelos instrumentos) e, pela forma de como tocam a canção, percebe-se a influência de The Beatles. A responsividade, nessa canção, encontra-se no ato religioso vivenciado em demasia na cultura popular e na contemplação ativa da banda Os Mutantes, que re-produz, na canção “Bat Macumba” (1968), sua visão super-heróica, psicodélica e experimental acerca do ritual do Candomblé, além de direcionar seu discurso cancioneiro para outros contempladores que não estão, necessariamente, inseridos no contexto a que a canção pertence.
Todo o arranjo da canção foi adaptado aos Mutantes, para adequar-se, esteticamente, ao seu estilo. Assim, apesar de ser a mesma letra, a enunciação é outra, primeiro porque a enunciação é sempre única e, depois, pelos valores instituídos pela entonação e pelo andamento melódico, que se igualam ao ritmo festivo na versão d’Os Mutantes. A música perde o seu valor místico e passa a ser usada para animação. Especificamente nessa canção, a presença beatleana pode ser observada na utilização de vários instrumentos de percussão e na guitarra, que está totalmente descontextualizada em toda a canção, assim como o baixo. Por se tratar de uma canção de um ritmo vindo da África, onde pouco a usam dessa maneira, para exatamente contrastar as duas realidades e trazer para a sociedade urbana o ritmo conhecido no interior do país.
O psicodelismo deve ser analisado tanto no andamento melódico quanto nos efeitos de sonoplastia e nos efeitos, no final da canção, realizados pela distorção da guitarra. O experimentalismo, por sua vez, pode ser observado pela utilização de vários instrumentos de percussão durante a canção. Essa diversidade de instrumentos possui o intuito de substituição da bateria.
A mesma canção direcionada a públicos, de lugares e de classes sociais diferentes, carrega diversos sentidos distintos. Assim, a relação entre o contemplador e a arte não será a mesma devido às transformações dos que antes eram contempladores e, agora, são locutores de um outro discurso: trazer à tona um ritmo  pertencente a países miscigenados como o Brasil e a África, com suas culturas e ritos populares, geralmente não mostrados/cantados.
A canção francesa de Françoise Hardy, o outro caso citado, também sofre muitas mudanças, pois ganha arranjo moderno com uma introdução de vocalizações do grupo e várias aberturas de vozes durante a letra. O que deveria ser uma descrição romântica dos primeiros momentos alegres do dia passa a ser uma piada. Ainda mais quando utilizam uma bomba de inseticida como instrumento musical para substituir o chimbau, como o principal foco do experimentalismo. Outra vez, a banda traz para o seu estilo uma canção totalmente diferente, pois também se diferencia da original devido à mudança de seu arranjo.
O estilo antropofágico é comprovado nessa canção devido à utilização de elementos vindos de fora (desde a letra, em outra língua, até a melodia), mas não como uma simples reprodução. Ao interpretar a canção, a banda a re-produz como contempladora ativa que re-age diante da obra estética e a reação é a produção de novos sentidos, de maneira ativa, no ato da execução performática da canção de outro, mas com a cara d’Os Mutantes. Essa maneira de agir acaba por criar uma outra concepção de produção da canção via alterações musicais e ironia performática.
A ideia de piada é enfatizada, como já mencionado, pelo uso do inseticida durante toda a canção. Uma canção que versa, na letra, sobre a primeira alegria do dia: um pássaro que canta, o sopro do mar etc. Passa a ser cômica a presença do inseticida, pois ela realça um “defeito”, a imperfeição do dia “feliz” e “perfeito” cantado. Em outras palavras, a brincadeira cômica que parece pilhar da narrativa ingênua, na verdade, caracteriza-se pela crítica debochada e desconcertante que incomoda o ouvinte ao chamar sua atenção para a impossibilidade da perfeição descrita – e isso fica ainda mais evidente e adquire um outro sentido se se pensar no contexto brasileiro vivido naquele momento histórico: a Ditadura Militar que fazia questão de divulgar uma felicidade inexistente, falsa e aparente, constrangedora até ao se pensar nas torturas e perseguições existentes no país.  Assim, as coisas simples e boas de um dia narrado por uma possível mulher apaixonada cai por terra, pois o mundo não é cor-de-rosa ou, como cantará mais tarde Rita Lee “é cor-de-rosa choque”. A banda, ao direciona a canção francesa para que ela perca um pouco sua delicadeza ingênua e ganhe mais realidade, a moderniza, pois quebra o romantismo e transforma-a em uma piada jocosa que relativiza aparentes “verdades” ilusórias, como a da perfeição inexistente.
Deve-se observar que, apenas com a análise dos elementos da banda inglesa e dos tropicalistas presentes na obra d’Os Mutantes pode-se ver várias mudanças de sentido nas letras. A “mistura” de elementos compõe e, mais tarde, realça o estilo da banda, que  miscigena vários gêneros e relativiza pontos de vista tradicionais via sátira, principalmente, das relações entre os seres humanos, o que é muito comum em uma banda de jovens. Porém, o diferencial d’Os Mutantes é a crítica implícita nas canções. Essa característica é que preconizará o que se conhece hoje como rock nacional, como, por exemplo, as canções da Blitz, do Ultraje a Rigor, do Camisa de Vênus, do Barão Vermelho, dos Titãs e do Biquini Cavadão, entre outros.
A cadeia de modificações estéticas predomina no estilo d’Os Mutantes. As interações entre sujeitos e enunciados artísticos são marcadas em várias das canções gravadas pela banda, como as vistas aqui, pelas transformações que foram feitas a partir das originais. Com ênfase no diálogo entre The Beatles e a Tropicália existente n’Os Mutantes, pode-se ver a vivência estética como responsividade, o que marca o estilo da banda. Isto é, os próprios Mutantes compõem-se como resposta à obra da banda inglesa e dos tropicalistas, o que colabora para que Os Mutantes encontrem sua identidade a partir de sua vivência contemplativa e desenvolvam/construam a sua arte/canção, o seu jeito de ser Mutante.

Bibliográfica:
BAKHTIN, M.M. (VOLOSHINOV) (1929). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1997.
BEATLES, T. (1966) Revolver. Londres: EMI, 1966
CALADO, C. A Divina Comedia dos Mutantes. Rio de Janeiro: 34, 1995.
GIL, G. (1968). Gilberto Gil. São Paulo: Universal, 1998.
___. (1968). “Domingo no Parque”. Gilberto Gil.  São Paulo : Universal, 1998
MUTANTES, Os. (1968). Os Mutantes. Rio de Janeiro: Polydor, 1992
___. (1968). “Bat Macumba”. Os Mutantes. Rio de Janeiro: Polydor, 1992
___. (1968). “Le Premier Bonheur du Jour”. Os Mutantes. Rio de Janeiro: Polydor, 1992


[1] Graduando do curso de Letras da UNESP – Câmpus de Assis; GED; rafaeldacol@hotmail.com.
[2] Ano do famoso Maio de 68, marco do movimento estudantil francês, de grandes manifestações de resistência juvenil e também de diversos setores das sociedades que queriam protestar por melhores condições de vida, pelo direito à liberdade de expressão e de manifestação, entre outras questões, típicas de uma geração revolucionária.

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